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beautiful boy

continuas a viagem e ouves o john lennon. está sol mas, se não fosse a escuridão nunca degustarias a luz. e depois o mar, que é como uma estrada sublime. já não sonhas com nova iorque, porque há poesia suficiente na tua rua.

no fim do dia

no meio da mudança, uns estão genuinamente perdidos, outros fingem não estar. estes últimos nunca entenderão que só a assumpção do desnorte nos obriga a encontrar o rumo. parecerão fortes – sim – nas salas vazias.

pequena prosa da preguiça

Antes do despertador tocar, já eu estou sem vontade de acordar. Nunca precisei de esperar que ele tocasse para chegar a esta conclusão. Não sou nenhum deslumbrado. Às vezes, mesmo antes de me deitar, tenho já a certeza de que não me apetecerá levantar. Não sou desses que só se lembram de como é bom estar na cama no momento de acordar, desses que mal acordam só pensam em  tomar café para ficarem despertos. Eu, mal acordo, só penso em voltar ao sono. Sou de uma preguiça pura, genuína, autêntica; de uma dessas preguiças opiárias e lânguidas. Sem culpa, nem remorso.

o cidadão comum

Não valerá a pena continuar. Está muito frio. Inácio esgotou o tema de conversa. Diz-se cansado do ruído das notícias e já não quer saber. Nem do governo, nem dos impostos, nem da Europa – não quer saber. Esta é a sua nova alvorada, o nascer dos dias que aí vêm. Passeará pelos dias como se fosse domingo. Dedicar-se-á à melancolia dos movimentos simples. Nunca o apanharão vivo.

a grande ilusão

Houve um tempo em que viajava com o meu pai. Ficávamos em hotéis e jantávamos todos os dias fora. Durante o dia, ele visitava clientes e eu ficava à solta por Lisboa. E lá ia eu, na 5 de Outubro à Av. de Berna, com todo o tempo. Tentava parecer um local: andar cool, lento, despreocupado mas observador. Sonhava, então, em ser qualquer coisa que me permitisse sair do trabalho e sentar-me num bar, com os amigos, a beber um uísque. Sim, quando for grande quero ter o prazer de sair do trabalho, todos os dias, e ir aproveitar a cidade. Ser adulto significava essa liberdade de estética conservadora e melancólica. Ficava fascinado com os bares dos hotéis: as raparigas a fazer conversa com os homens de negócio, de pernas cruzadas, em constante sedução; o fumo lânguido dos cigarros; os copos Old Fashioned a reluzirem. Achava eu que seria assim, com todo o tempo. Mas, depois, um tipo cresce e há compras para fazer e jantar em casa, há o cansaço e as horas extra. A grande ilusão é a de que conseguimos ser igualmente conservadores aos 15 e aos 30.

os malefícios da fama

Mozart tem vivido uma situação muito complicada. O seu prestígio é alvo fácil de actos de comércio. O seu talento é caricaturável. A sua honra desvaneceu-se no tempo. Quando comentei isto com uns amigos, disseram-me sem hesitar: “Ah! Tal e qual o Michael Jackson.” É uma crise séria, a que enfrentamos. Urge salvar Mozart.

horizonte

Tenho pensado em mudar-me para a província. Este poderá, até, ser um bom plano para um futuro próximo. É claro que fica sempre bem querer mudar para o campo no estrangeiro, já que o campo, por cá, é bruto, pouco sofisticado e aborrecido. Ainda assim, continuo a preferir o sossego da lezíria. E não é que algo me mova contra a cidade mas, sou mais um rapaz do campo do que um homem da cidade. Não tenho jeito para agendas, estacionamento e trânsito de rotina; não me adapto às novidades e é raro suportar as conversas da urbanidade. Gosto do tempo sem desperdício e de aproveitar as horas a passarem no horizonte.

cada vez mais, o menos

Tenho perdido a paciência e alguma generosidade. Por estes dias, pouca atenção tenho dado aos problemas alheios. Já pouco me importa. Cada vez menos, vou falando com a família. Visito um ou dois amigos e tento escapar a programas de agenda predefinida. Mesmo assim, cada vez mais, tenho menos tempo.

almas cansadas

Alguns já emigraram. Outros estão meio perdidos pelas mesas dos cafés, à noite, entre os brandis e a cerveja; a barba por fazer; os olhos vidrados de desorientação e de raiva. Já pouco se vêem durante o dia. Estão conformados com a impotência dos outros. Perderam o gosto pelas coisas e o discernimento. Vivem, agora, de um orgulho reactivo e fazem o inverno parecer mais longo.

adeus, companheiro

do tempo, da cidade, dos dias e das noites serenas, da primavera, da certeza das coisas simples, do compasso livre, da leveza dos pés, das manhãs e do dia presente.

empatia

tenho arriscado não olhar para o termómetro. as horas, vejo-as pelo relógio de pulso e já há algum tempo que ignoro as notícias na rádio, bem como não ligo a televisão com a mesma frequência de outros tempos. tudo isto faz parte de um plano de alheamento. e está a resultar. sinto-me muito mais próximo dos outros.

repetição

saltos altos num compasso certo e outros sons. na rua é segunda-feira. é preciso fazer a barba.

the day i tried to live

já chegaste a uma idade em que não compensa acordar tarde. acabou. e, agora, sabes que podes aproveitar os domingos de manhã para arrumar os dias. devias escrever mas, preferes ficar a olhar para a janela, com a palma da mão sob o queixo, a ver a rua pelo cortinado. ficas ali, a pensar na liberdade, no amor e na lista de compras. decisões fáceis para um domingo: a lista de compras, sempre.

os contos da preguiça

Devia ser proibido por lei bater à porta das pessoas depois das nove e meia da noite. Quando soou a campainha (passariam poucos minutos das dez horas), eu estava já de pijama e robe, decidido a iniciar uma leitura recomendada por um colega do serviço muito entendido na história da política do final do século XIX.
– Boa noite, vizinho. Queira desculpar a hora…
– Boa noite. Passa-se alguma coisa? –  respondi num tom surpreendido, encenado.
Ramalho, o meu vizinho do 2ºesquerdo, era um tipo simpático, educado e silencioso. Nunca tive de chamar a polícia para o fazer entender o bem-estar alheio. Daí que, parte da minha surpresa, era genuína. Estava ensopado e visivelmente constrangido. Apressou-se a justificar o descaramento:
– Eu peço imensa desculpa, vizinho, mas não fosse o sucedido ter contornos de tragédia e nunca o viria incomodar. Hoje, saí um pouco mais tarde do trabalho. Talvez por isso, tive de estacionar o carro num sítio pouco habitual, já no fim da rua. Ali, ao pé do antigo edifício do colégio…
Continuou a explicar o evento, mas eu já estava a ver o filme todo. Foi como se o deixasse de ouvir. Porque lhe caiu uma pedra do tamanho de um meteorito em cima da viatura, e agora não conseguia tirar dali o carro, porque mais não sei o quê, e vai de pensar que seria uma excelente ideia bater-me à porta, a mim, que para além de ter cara de Santa Casa da Misericórdia, ainda lhe devo ter parecido um Hércules. Eu, de pijama e robe, às nove e meia da noite…
Um dilema infernal apoderou-se de mim. Por um lado, queria escapar da obrigação de o ajudar, enquanto bom vizinho, a resolver o seu problema, prestando-me a um papel solidário que tanta falta faz nesta sociedade toda estraçalhada pelo egoísmo e pela corrupção da moralidade. Por outro lado, choviam facas de mato, lá fora; o vento batia nos beirais dos prédios e assobiava como uma alma penada em sofrimento eterno; a chaleira guinchava com a água a escaldar. Senti o corpo tremer, como um arrepio de febre repentina. Os joelhos amoleceram, quentes, e os olhos começaram a arder de sono, como se o pedido de auxílio tivesse feito despertar Morfeu dentro do meu espírito já pouco motivado, de si. Estava, espiritualmente, de pijama.
– Ó sr. Ramalho, eu gostaria tanto de o ajudar! Por infelicidade, a minha hérnia hoje deixou-me num estado tal, que julgo nem conseguir levantar um copo. Mas, talvez eu possa ajudar… Não sei… Quer que ligue para os bombeiros?
– Já liguei três vezes. Parece que há uma inundação muito grande na avenida e que está tudo para lá destacado. Que não podem fazer nada, que já se arrebentaram mais de cinco condutas e que o veterinário já teve de evacuar o consultório. A confusão é tal, que na rua de baixo, uma senhora ligou para a polícia a dizer que devia ter acontecido alguma coisa no Jardim Zoológico, veja lá. O que é que eu hei-de fazer à minha vida?
Não tinha resposta para isto. Nunca tive.
Fiquei ali, a tentar acabar com a conversa para não me sentir cada vez mais obrigado. Ensaiei um ligeiro bluff que acabou por ter um resultado muito positivo para as minhas pretensões:
– Deixe-se estar, homem. Não vai piorar o seu estado só para me ajudar. Nem pensar! Vou tentar pedir ajuda ao Teixeira, que a esta hora já deve ter chegado da barbearia. Não que ele consiga fazer grande coisa só com um braço, mas… Sempre é alguma coisa.
Despediu-se, agradeceu muito a minha atenção e desceu as escadas.
Voltei para dentro e, com esta conversa toda, a água já estava morna. Voltei a aquecê-la e subi a um banco para ir buscar o bule, no topo do armário da cozinha. A minha irmã já me havia alertado para aquele banco. Todas as terças-feiras, quando cá vem para levar a roupa, deixa sempre dois ou três recados logísticos muito pertinentes. Como raramente uso aquele banco, não liguei.
Estendido no chão da cozinha, pus-me a pensar em Ramalho, deitado na sua cama, ferrado no sono, depois do dia atribulado. Ainda ouvi, ao longe, duas ou três sirenes e olhei para o telefone, no corredor, já sem convicção. Ao fundo, a porta, como o fim do túnel, silenciosa, imóvel. Àquela hora ninguém tocaria, certamente.

timelapse II

timelapse

Dormir, para voltar a acordar, para voltar a dormir, para acordar novamente. Pelo meio, umas horas com sol ou com chuva, a luz a mudar devagar, as pessoas a irem de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Abre a porta, fecha a porta, abre a porta, fecha a porta. Próxima paragem. Sempre assim, sempre assim. Um tédio.

morning glory

Acordei cedo, com a cabeça ainda a balançar, na dança do equilíbrio. Não comi nada e saí. Visitei uns amigos na Rua da Prata e encontrei-me, já pela hora do almoço, com uma família que eu próprio escolhi, de certo modo. Depois do almoço, a cabeça continuava a latejar e, então, decidi voltar a casa. Estendi-me no sofá e coloquei um western do Sam Fuller. Decidi não jantar. Ainda ouvi dois discos, mas estava uma canção latente na minha nuca. Não sabendo bem porquê, procurei ouvi-la. Foi então que percebi que estava na altura de celebrar o rapaz que ficou lá para trás, numa manhã gloriosa, sem rugas. Nunca alguém disse que ia ser fácil. Agora, que a noite caiu, mais cedo que nos outros dias, estou aqui sentado a manifestar a vontade de acordar.

out in space

sentir a falta da terra, dos pés na terra, da solidez dos dias, das certezas e das convicções, dos dogmas e do pecado tolerável. este blog faz anos, por esta altura. já não sei bem quando. será sempre recomendável dizer que é possível que ainda demore algum tempo até voltarmos para casa.

uma desilusão

Uma luz celeste saiu por detrás dos prédios quando começou a canção de Gardel. Dois homens, distraídos, continuaram a conversar e os gatos ficaram estáticos e cândidos. Lembro-me, vagamente, de ter sentido um estranho toque do metal, como se fosse domingo. Mas não me lembro de não haver Deus. Sonhei que estaria, talvez, em Paris. Afinal, era apenas Buenos Aires.

streetwalk

O primeiro dia de gabardine deveria ser um dia feliz. Mas não é. Porque os neons não deixam, porque a chuva magoa e os passeios é que marcam o compasso, porque os carros não param e porque tudo o resto é um movimento repetido, quase estático. E só tu achas que estás em Nova Iorque.