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Posts Tagged ‘ficção’

o cidadão comum

Não valerá a pena continuar. Está muito frio. Inácio esgotou o tema de conversa. Diz-se cansado do ruído das notícias e já não quer saber. Nem do governo, nem dos impostos, nem da Europa – não quer saber. Esta é a sua nova alvorada, o nascer dos dias que aí vêm. Passeará pelos dias como se fosse domingo. Dedicar-se-á à melancolia dos movimentos simples. Nunca o apanharão vivo.

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Devia ser proibido por lei bater à porta das pessoas depois das nove e meia da noite. Quando soou a campainha (passariam poucos minutos das dez horas), eu estava já de pijama e robe, decidido a iniciar uma leitura recomendada por um colega do serviço muito entendido na história da política do final do século XIX.
– Boa noite, vizinho. Queira desculpar a hora…
– Boa noite. Passa-se alguma coisa? –  respondi num tom surpreendido, encenado.
Ramalho, o meu vizinho do 2ºesquerdo, era um tipo simpático, educado e silencioso. Nunca tive de chamar a polícia para o fazer entender o bem-estar alheio. Daí que, parte da minha surpresa, era genuína. Estava ensopado e visivelmente constrangido. Apressou-se a justificar o descaramento:
– Eu peço imensa desculpa, vizinho, mas não fosse o sucedido ter contornos de tragédia e nunca o viria incomodar. Hoje, saí um pouco mais tarde do trabalho. Talvez por isso, tive de estacionar o carro num sítio pouco habitual, já no fim da rua. Ali, ao pé do antigo edifício do colégio…
Continuou a explicar o evento, mas eu já estava a ver o filme todo. Foi como se o deixasse de ouvir. Porque lhe caiu uma pedra do tamanho de um meteorito em cima da viatura, e agora não conseguia tirar dali o carro, porque mais não sei o quê, e vai de pensar que seria uma excelente ideia bater-me à porta, a mim, que para além de ter cara de Santa Casa da Misericórdia, ainda lhe devo ter parecido um Hércules. Eu, de pijama e robe, às nove e meia da noite…
Um dilema infernal apoderou-se de mim. Por um lado, queria escapar da obrigação de o ajudar, enquanto bom vizinho, a resolver o seu problema, prestando-me a um papel solidário que tanta falta faz nesta sociedade toda estraçalhada pelo egoísmo e pela corrupção da moralidade. Por outro lado, choviam facas de mato, lá fora; o vento batia nos beirais dos prédios e assobiava como uma alma penada em sofrimento eterno; a chaleira guinchava com a água a escaldar. Senti o corpo tremer, como um arrepio de febre repentina. Os joelhos amoleceram, quentes, e os olhos começaram a arder de sono, como se o pedido de auxílio tivesse feito despertar Morfeu dentro do meu espírito já pouco motivado, de si. Estava, espiritualmente, de pijama.
– Ó sr. Ramalho, eu gostaria tanto de o ajudar! Por infelicidade, a minha hérnia hoje deixou-me num estado tal, que julgo nem conseguir levantar um copo. Mas, talvez eu possa ajudar… Não sei… Quer que ligue para os bombeiros?
– Já liguei três vezes. Parece que há uma inundação muito grande na avenida e que está tudo para lá destacado. Que não podem fazer nada, que já se arrebentaram mais de cinco condutas e que o veterinário já teve de evacuar o consultório. A confusão é tal, que na rua de baixo, uma senhora ligou para a polícia a dizer que devia ter acontecido alguma coisa no Jardim Zoológico, veja lá. O que é que eu hei-de fazer à minha vida?
Não tinha resposta para isto. Nunca tive.
Fiquei ali, a tentar acabar com a conversa para não me sentir cada vez mais obrigado. Ensaiei um ligeiro bluff que acabou por ter um resultado muito positivo para as minhas pretensões:
– Deixe-se estar, homem. Não vai piorar o seu estado só para me ajudar. Nem pensar! Vou tentar pedir ajuda ao Teixeira, que a esta hora já deve ter chegado da barbearia. Não que ele consiga fazer grande coisa só com um braço, mas… Sempre é alguma coisa.
Despediu-se, agradeceu muito a minha atenção e desceu as escadas.
Voltei para dentro e, com esta conversa toda, a água já estava morna. Voltei a aquecê-la e subi a um banco para ir buscar o bule, no topo do armário da cozinha. A minha irmã já me havia alertado para aquele banco. Todas as terças-feiras, quando cá vem para levar a roupa, deixa sempre dois ou três recados logísticos muito pertinentes. Como raramente uso aquele banco, não liguei.
Estendido no chão da cozinha, pus-me a pensar em Ramalho, deitado na sua cama, ferrado no sono, depois do dia atribulado. Ainda ouvi, ao longe, duas ou três sirenes e olhei para o telefone, no corredor, já sem convicção. Ao fundo, a porta, como o fim do túnel, silenciosa, imóvel. Àquela hora ninguém tocaria, certamente.

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Esperei por Karen uns metros à frente da estação de Gayrettepe. O caos, nas costas, com os semáforos avariados. A camisa colada à pele. Não há sombra que nos safe. Da boca do metro saem dezenas de raparigas prontas para casar, em direcção aos escritórios dos pretendidos; pequenas Hepburn’s, compenetradas no papel, que esqueceram o ramadão e procuram a montra da Hermés em hora de reza. Na minha cabeça soa I’m so bored with the USA e Karen surge no meio do calor, como quem traz a civilidade fútil de Time Square no bolso, o que lhe vale ficar retida à entrada do Astoria. O detector apitou e voltou a apitar. Enquanto tira o seu universo da mala, a americana insurge-se contra a disparidade nos critérios de segurança e só pára de falar quando o empregado lhe despeja o menu nas mãos. Javier está atrasado e a conversa das indignações regressa. Porque a América é que é. Os meus olhos começam a seguir uma cortina de fumo que se ergue sobre Besiktas. Imagino as sirenes lá fora, estridentes, os taxistas precipitando-se pelas ruas e os peões a desafiarem a vida. Seja o que Alá quiser. Ao longe, vejo então o Polat em chamas, a beleza do progresso a arder no meio da urbe. Por esta hora, Eminonu estará calma e serena, já só com meia dúzia de vendedores persistentes. Karen assusta-se, preocupada com Javier. Parece quase um bom início de anedota: um português, uma americana e um espanhol… Agita-se na cadeira procurando informações no telefone e pergunta indignada como quer este país ser europeu. O calor passa, enfim, mas na minha cabeça Strummer continua a cantar.

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the national

“Vamos! Despacha-te que é tarde.” Visto o casaco à pressa e mal tenho tempo de verificar se está tudo bem, ao espelho. Sempre bem parecido, banho tomado, ressaca a desaparecer e o estômago vazio. Saímos de Temple e subimos em direcção a norte. “Comemos pelo caminho. Despacha-te que ainda temos de passar em Eldonian para fazer as apostas.” Às vezes o meu pai ainda acha que eu tenho 12 anos, no tempo em que corria atrás dele pelas ruas da cidade, sempre com os seus planos de fim-de-semana, tudo muito bem montado. Uma correria. Sempre a correr. Menos depois do almoço quando passeávamos calmamente e ele me contava da vez que tinha falado com o Ringo e que lhe parecera um tipo impecável, ou então da vez em que o Prince Charles lhe elogiou o cavalo. “O Arizona Kid foi o melhor cavalo que correu o National.” Sempre as mesmas histórias, o mesmo revivalismo, os olhos vidrados como quem já só olha para lado algum. Assim que chegarmos a Aintree vai garantir-me que temos vencedor. Como sempre, vamos perder.

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arizona

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cuidar dos vivos

Numa aldeia perto de Figueiró dos Vinhos nasce um ribeiro que, por sorte, segue todo lampeiro até se espreguiçar numa tranquila piscina natural. Pelo caminho, encontra aqui e ali velhas casas de assombro que vão ficando de herança, imóveis. Numa dessas casas, dormi uma noite de Setembro com uma mulher, cujo nome não me quero lembrar. Recordo, sim, uma cortina branca, quase transparente, que de tão suja que estava, não se mexia com o vento. Foi uma noite longa, a ver os santinhos abandonados em cima de cómodas, como bibelôs nos seus altares naturais, e a sentir o cheiro húmido do património de família desconhecida. Na manhã seguinte, reparei que na cozinha estavam três copos de plástico coloridos, uma embalagem de chocolate em pó e três ou quatro iogurtes dentro do prazo de validade. Cá fora, no alpendre, partes de dois ou três jornais, um de 2002 e outro de Janeiro de 2003. Corria pouca água, mas a que corria era quente. No corredor dos quartos, ainda vi a fotografia de dois mortos, muito bem arranjadinhos para a época. Achei estranho que ficassem surpreendidos quando, assim que cheguei à vila, perguntei se, pelo menos, lhes regavam as flores da campa.

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o mercado da memória

Com o cérebro vazio como um parque de estacionamento num filme de suspense, sem um único sinal de movimento, ria enquanto ia repetindo “este gajo, eheheh, que grande maluco”, acompanhando com um paradoxal abanar de cabeça como quem diz não. E repetia isto ao mesmo tempo que na rádio, na voz do locutor, sobressaía a expressão “grande maluco” com a emoção de uma marta depois do almoço. Gostava daqueles programas de revivalismo. “Eh! esta música… xiiii este shampô…”. Como seria possível alguém lembrar-se de tanta coisa.? Nunca tinha pensado na memória nem no que ela lhe trazia. Mas, ali, no meio do trãnsito, distraía-se enquanto os outros se lembravam por ele. Isto é que é entretenimento! É mesmo disto que precisamos: gente bem disposta que nos ofereça uma memória standard a preço imbatível. Na volta ainda vai ao espectáculo no Tivoli.

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Os irmãos Boston

Vamos te matar – disseram serenos os irmãos Boston. Chamavam-lhes Boston porque vinham de Filadélfia e, já se sabe, nestas coisas, quando as pessoas têm o cabelo um bocado mais alourado é muito fácil confundir. E enquanto o velho ali ficava a espernear-se de medo o candeeiro caiu. Olha que porra! É preferível não matar no escuro quando se encontram três pessoas na sala. Foi então que o mais gordinho dos irmãos sugeriu qualquer coisa que resolvesse a situação. Muito bem pensado! No entanto, nada disso foi necessário. O velhote tinha descoberto uma lanterna nos bolsos. Até dá gosto ver pessoas que mostram este nível de dignidade. E quando se fez luz o mais alto dos irmãos Boston disse surpreendido: “Então trazem-me um cão em vez de um homem?”. Logo agora que se preparavam para chegar a acordo sobre o problema das vagas na mesa do dominó.

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serão

Convidou-me para tomar chá. Era um chá escocês de longa data e corria languido pelo corpo como se sentisse em casa, como se o próprio estivesse sentado numa poltrona cheia de ancestralidade e robustez familiar. Falámos da terra e dos homens, bons e maus, falámos dos dias e das noites e em nós desenhou-se uma história dentro de várias histórias com o empirismo natural dos líricos. Depois, já perto da meia-noite, julgo que chegou o Sr. Plant e o Sr. Young. Falámos dos clássicos, da matéria dos sonhos e da estrada infinita que transporta todas as guitarras e a esperança em permanente guerra com as frustrações proletárias. O Sr. Plant, num modo quase épico, discorreu sobre os anjos de Avalon e sobre as formas sublimes da Primavera. E já um pouco mais tarde, quando o rapé dava sinais de desbaste, eu sugeri em tom sibilino: “chegámos a casa”. Então, ele saiu do carro num tom cokney exclamou com satisfação “até amanhã, pá” como se Maio fosse agora possível.

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cheira a amêndoa, dizia teresinha com a cabeça inclinada para trás e os braços a sustentar o corpo todo enquanto respirava a geada que caía competente sobre o telhado. do outro lado, os gémeos acendiam um lucky com os fósforos roubados na cozinha pouco depois do jantar e olhavam com um ar ameaçador o irmão de teresinha como que adivinhando um pequeno delator. o rapaz, ensonado, deixou-se ficar lá dentro a olhar o monopólio e as peças dos outros jogos espalhadas pelo chão do sótão. havia ainda vestígios de uma intifada etária por toda a parte e, no canto da pequena divisão, amontoados, os colchões e edredons que emília deixara a meio da noite e da algazarra sem que déssemos por isso. “começa sempre antes do que pensamos” – era o que o meu avô dizia sobre a primavera. mas nesse dia ele não estava lá. já não estava há muitos dias, talvez milhares ou milhões ou biliões de dias, apesar de ainda se ver a sua imagem magistral desenhada na poltrona da sala. e quando o galo cantou pela primeira vez, carlos, o mais velho de nós, chamou-os todos para dentro num tom habitual que não permitia reclamações. teresinha ainda ficou mais um pouco a cheirar o céu, e foi com ela que o dia nasceu.

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art.  232º do Código Civil

Âmbito do acordo de vontades

O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo.

fizemos um contrato sobre o amor. eu finjo que a amo e ela finge acreditar. as cláusulas são simples e não obrigam nenhuma das partes a grandes sacrifícios. funcionando apenas pela noite, o contrato tem subentendido um horário de seis dias, de segunda a sábado. pode, no entanto, ser concedido um período de horas extra, dependendo do seu nível de carência, e então é aberta uma excepção para ir ao cinema ou passear pela baixa em tardes de sol, de preferência. o domingo funciona como dia de folga por questões éticas e respeito pela tradição vigente, dando-lhe assim espaço para ela própria poder amar. contudo, se o amante de domingo ocupar horário destinado ao nosso contrato poderá ter de me indemnizar pelo dano emergente e frustração de expectativas. não que as expectativas sejam reais, mas para que a especialidade do fim não fosse pervertida decidiu-se aplicá-las analogamente. às vezes, ao domingo, acordo convencido de que é dia de ir amar, e mesmo antes de abrir a janela imagino o sol a reflectir nas árvores. é uma espécie de vício em trabalho. passamos a semana toda nisto e depois na folga nem sabemos o que fazer. são automatismos que se criam mesmo quando se está a fingir. é sinal que o contrato é bastante intuitivo. porém, se alguma das partes deixar de fingir a relação contratual extingue-se. a única causa de extinção é o beijo. não tem eficácia externa.

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apache

caía já a noite e sheldon sentia o primeiro cheiro das nuvens. “uma noite trágica”, pensou. havia algum tempo que o céu não estremecia no arizona. a estrada parecia anunciar o sangue e o vento levantava agora o pó das 3 winchesters expostas sobre o alpendre. e apesar da tranquilidade de striker e mr. six, devidamente selados, o silêncio da planície esmagava-lhe o peito. ali estava ele, esperando os homens que vinham do sul da california, temendo que a chuva anunciada pelo apache lhe estragasse a estética da pancadaria.

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é um remédio

fecho os olhos. agora sim vejo onde estou. reconheço as ruas e a baía da cidade. é cape town. eufóricos e estranhamente descontraídos, um grupo de europeus do norte expande-se pelo passeio carregando garrafas de champagne como adereço. não reparam, contudo, nos moleques que lhes espiam as carteiras e os bolsos. uma prostituta chama a minha atenção. é um homem. um outro grupo de prostitutas insiste num grupo de estrangeiros, jovens yuppies que vão salvar o terceiro mundo. de alguns bares sai o som forçado do free jazz, mas a maioria afunda-se no hip-hop americano. um bmw e um volvo e o cheiro da heroína que lhes sai do escape sopram os segundos finais do ano.

volto a abrir os olhos. a humidade consome-me o corpo. sei agora onde estou. sinto o cheiro do pacífico. cheguei a tempo a lima e posso dar-me por satisfeito. odeio o cheiro das putas colombianas. evito a azáfama de buenos aires e posso ainda sentir o conforto dos andes. se calhar, quando abrir os olhos novamente, estarei em kuala lumpur, em hanói, em oslo, em istambul ou noutro lado qualquer consumido pela decadência da solidão. mais vale isso que o tédio burguês de um apartamento demasiado confortável em s.mamede de infesta.

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nos cafés da baixa

todos haviam esquecido o aniversário de rilke. eu não. sem ele saber usei as linhas do progresso para obter tal informação e esperei o resto dos dias que faltavam desde essa falsa lembrança. combinámos o encontro num café da baixa perto do boulevard onde ele costumava espreitar colegiais toscos escorregando nas folhas de outono numa estranha harmonia com o vento e com as palavras soltas que percorriam sucessivamente o passeio.

receei que não tivesse recebido a minha carta. os correios têm imensa dificuldade em fazer chegar as cartas do futuro para o passado. é mais fácil enviar correspondência para o futuro. mas, mal se aproximou da porta percebi que tais receios eram injustificados. é sempre assim, só se percebe que o receio não faz sentido quando não há mais nada a recear. perguntou logo pelo americano: “é preciso música e música que seja as palavras dos nossos olhos”. o americano não fez questão de vir. mas rilke gosta de waits. nas suas palavras encontro sempre uma grande proximidade. dizem que o bourbon e o absinto são primos afastados.

não quis ficar muito tempo. “há que deixar a poesia para outros e não convém gastar a vista”. e saiu. fiquei sozinho no café a comemorar o seu aniversário como se aquele lugar nunca tivesse sido ocupado.

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a queda de um muro

era a manhã de todas as manhãs. o silêncio percorria as ruas sendo apenas interrompido pelo ladrar dos cães que guardavam as vedações que dividiam as terras. duas terras e um muro que era o espelho de uma tensão antiga. uma raiva. no meio da neblina um homem correu até ao fundo da rua e poucos segundos depois um estrondo acordou meio mundo à volta. naquele momento, naquele preciso momento, o muro caíra e durante vinte anos aquele seria o acontecimento mais entusiasmante em marrazes.

(inspirado suavemente ou mais ou menos isso em “o capote” de nicolai gogól)

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um morto não come geleia

klaus estava branco como, de resto, o estão todos os mortos ainda que não tão confortáveis num caixão de mogno forrado por um bordado inglês branco com nuances cinzentas claras que havia sido preparado por inácio gomes & filhos, funerária de prestígio em toda a região a sul de portalegre. os estrangeiros têm esta tendência de vir à descoberta de um lugar pitoresco. acabam por morrer na capital de distrito porque já ninguém se fica em frente ao mar ou isolado no monte, sozinho, na era dos telemóveis. depois são enfiados num fato dois números abaixo e sapatos com nacionalidades diferentes. mas, ali ninguém repara nos sapatos. a seu lado, duas mulheres. nenhuma parece fazer um grande esforço de luto. talvez uma vizinha, uma empregada de limpeza… vestem as duas um negro ligeiro e tomam um chá enquanto velam o corpo. o cadáver serve-lhes de motivo para recordações de uma outra vida. falam dos maridos e dos problemas quotidianos com a vizinhança. o chá é acompanhado com bolachas de manteiga que vão barrando grosseiramente com geleia. os maridos estão mortos como klaus. senão fosse esta necessidade de servir, de estar presente em total respeito pelos mortos e de ajudar o senhor padre, a sua vida resumiria-se a casa. e a casa, mas sem marido. estão, portanto, tão vivas como klaus, não obstante o facto deste não comer geleia. para seu desgosto um morto não come geleia.

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